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25 de outubro de 2017

Julián Fuks, vencedor do Prémio Literário José Saramago 2017



Julián Fuks, filho de pais argentinos, nasceu em São Paulo, no Brasil, em 1981. Publicou o primeiro livro, Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e eu, em 2004, e com ele ganhou o Prémio Nascente da Universidade de São Paulo. Em 2007 e 2012 foi finalista do Prémio Jabuti, com o livro Histórias de Literatura e Cegueira; e do Prémio Portugal Telecom (atual Oceanos) e São Paulo de Literatura, como Procura do romance. Também em 2012, foi considerado, pela revista Granta, um dos vinte melhores jovens escritores brasileiros. A Resistência é o seu quarto romance e venceu o Prémio Jabuti na categoria livro de ficção em 2016, foi finalista do Prémio Oceanos e venceu a Menção Honrosa no Prémio Rio de Literatura.

Sinopse

"Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adotado", anuncia, logo no início, o narrador deste romance. O leitor descobre-se à partida imerso numa memória pessoal que se revela também social e política. Do drama de um país, a Argentina a partir do golpe de 1976, desenvolve-se a história de uma família, num retrato denso e emocionante. Adotado por um casal de intelectuais que logo iriam procurar exílio no Brasil, o rapaz cresce, ganha irmãos, e as relações familiares tornam-se complexas. Cabe então ao irmão mais novo o exame desse passado e, mais importante, a reescrita do próprio enredo familiar.

Um livro em que emoção e inteligência andam de mãos dadas, tocando o coração e a cabeça dos leitores.

Comentários de imprensa

«O narrador aprendeu com a psicanálise que a resistência pode ser o lugar onde emerge o que não se quer admitir ou enxergar. Daí a necessidade de não ceder diante dela. Ali, justamente, é onde se deve insistir. A literatura muitas vezes é a forma dessa insistência. Mas poderíamos pensar que a literatura também resiste: ela reproduz modelos identitários, reforça posições familiares, cristalizando relatos de si.» Paloma Vidal, O Globo

«Um objeto narrativo dos mais sólidos, que não procura ser invasivo ou indiscreto, mas acima de tudo intenta resistir ao que nos devasta: o esquecimento, a alienação e a inobservância do outro e de si.» Estadão

«É com o seu Sebastián-Julián, “narrador não confiável”, no limite entre realidade e ficção, história e memória, que Fuks encontra na literatura a sua morada.» Folha de São Paulo

«O narrador aprendeu com a psicanálise que a resistência pode ser o lugar onde emerge o que não se quer admitir ou enxergar. Daí a necessidade de não ceder diante dela. Ali, justamente, é onde se deve insistir. A literatura muitas vezes é a forma dessa insistência. Mas poderíamos pensar que a literatura também resiste: ela reproduz modelos identitários, reforça posições familiares, cristalizando relatos de si.»
(…)
«O irmão é o leitor que se imagina e se teme. O leitor que se enfrenta, corajosamente,
como resistência ao silêncio.» O Globo 

Membros do Júri

Ana Paula Tavares

Literatura e exílio são, creio, duas faces da mesma moeda, nosso destino posto nas mãos do acaso.
Roberto Bolaño, 2000

O livro de Julián Fuks é uma história com várias histórias dentro e o acto de narrar desvela o nó das convergências que só se percebe pelo alinhamento da palavra em torno do que diz e do que esconde esse pacto da memória que toda a família transporta e passa de geração em geração. Pode-se herdar um exílio como se herda a casa do avô ou a rua onde estendida ao sol resiste a esperança. Escrever é aqui um acto de resistência, uma procura constante entre narrar e a precisão de recorrer às fontes (falas e silêncios da mãe do pai dos irmãos) de um passado vivido e outro que pode ser ficcionado a partir de uma observação directa que torna o romance esse território híbrido da experimentação e contaminação dos géneros e das espécies. Exílios, peregrinações, países de saída e países de acolhimento permitem uma reflexão sobre a condição do homem, suas dualidades e a responsabilidade do sujeito no acto de contar. Recupera-se a história que pode transportar toda uma simbologia da catarse resistindo sempre ao esquecimento, à memória, à própria escrita enquanto acto de culpa e expiação com os níveis de perda a surgir à medida que a família explode na escola. Itinerário de exílio, laços que a adopção cria e rompe, silêncios guardados e herdados pelas sucessivas gerações oferecem-se à gula do leitor numa escrita de grande elegância que moldura o interior do texto: “O parto eu não posso inventar, do parto nada se sabe. Pondero agora, passadas tantas páginas, que deveria ter sido fiel ao impulso de suprimir aqueles pobres cenários imaginários, que deveria ter cedido à hesitação e calado sobre esse acontecimento insondável. Não foi assim, não foi narrável, o nascimento de meu irmão” (Fuks, P. 99) Mergulhar no passado é como olhar de frente a resistência na oposição de forças que não são porosas à memória e aos campos específicos da história. Momentos de fractura (a Argentina, a ditadura e a fuga) tornam a casa o lugar de exílio a partir do qual se constrói a narrativa que partindo da família convoca a depor a história dos lugares de saída e os de acolhimento. Chão de exílio e de deambulação pelas categorias do tempo e da história e que passam para dentro das famílias a situações vividas na ausência identitária das cidades e das ruas, subitamente tornadas fronteiras do passado vivido e a descobrir. O autor lida de forma cuidada com diferentes projecções autobiográficas que apreende e faz aumentar nos domínios da autoficção com respeito pela matriz que rege os diferentes mundos ficcionais e verdadeiros para que o todo seja o resultado das partes. Falar de um irmão adoptado, inventar-lhe a voz implica descobrir as  experiências de exílio de todos os implicados. Pais que legam aos filhos sua situação de exilados e as histórias dos países que deixam para viver uma condição de exilado num país diferente. Assim a condição de adoptado e a resistência à escrita dos contornos todos dos conflitos. Todas as ruas de sentido único ganham novos sentidos com a palavra certa que Julian Fuks usa para escrever o  romance e ao mesmo tempo nos dar conta da história e da memória do exílio da política e da família enquanto espelho onde se desenha a história do universo.


António Mega Ferreira

Há tantas coisas neste curto romance, tantas e tão desafiantes, que, às vezes, parece que a narrativa vai implodir. Mas não: com mestria literária notável, o autor suspende os momentos suscetíveis de desencadear as catástrofes à beira de qualquer desenlace, porque o romance não deve ser mais cruel do que a vida. Ou, se o é, deve sê-lo de forma implícita, resguardando a privacidade dos seres e a sua
capacidade de resistirem ao tempo e aos desvarios da História. A narrativa oscila, assim, entre acelerações e rallentandi, entre reminiscências e a impossibilidade de as restituir no presente, entre a génese de uma família, a sua, e a constatação de que “esse início era definido arbitrariamente e que podia se dar em qualquer época, em qualquer lugar antigo habitado por pessoas.” A inquirição sobre a natureza e o funcionamento da sua família, movida pelo mistério e pelos silêncios daquele que é o irmão mais velho, tecnicamento denominável como “filho adotivo”, acaba por ser uma devassa de alcance universal, uma investigação que progressivamente se vai erguendo das circunstâncias pessoais à pergunta mais essencial sobre a natureza humana: porquê resistir? Ou: quais as formas (e as forças) que nos fazem resistir à “brutalidade do mundo”? A Resistência é uma peça de câmara, íntima e subtil. É também uma demonstração magistral de como a língua literária portuguesa, aqui no seu modo brasileiro, se adapta bem aos tons sépia de um monólogo despojado, mas impiedoso, recitado sotto voce.

Manuel Frias Martins

A construção literária de A Resistência situa-se num plano em que a maturidade da linguagem, a sobriedade de presentificação da estória e o alcance propriamente estético do desenho ficcional se oferecem ao leitor pela memória cultural daquilo que, felizmente, continua ainda hoje a ser valorizado como elevado conseguimento artístico. Colocando-se no registo da autoficção, A Resistência coloca o leitor em três planos simultaneamente. O primeiro plano é o de uma estória política em torno da ditadura militar argentina que nos anos setenta/oitenta do século XX (1976-1983), entre muitos outros crimes e iniquidades, levou a cabo adoções forçadas de crianças arrancadas aos pais entretanto presos pelo regime e que depois acabaram orfãs de muitos dos mais de 30.000 mil desaparecidos. Fugidos para o Brasil por motivos políticos, um casal de psiquiatras leva consigo um filho que é, de facto, um bebé misteriosamente adotado entretanto por eles. No Brasil nascerá um filho, tornado narrador na primeira pessoa do romance, e que irá organizar o segundo plano de cativação do leitor. Este é o plano de manifestação da complexidade psicológica das relações familiares, e sobretudo da relação de amizade entre dois irmãos unidos por um segredo que só seus pais conhecem verdadeiramente, e que tem a ver com a sua origem argentina, com a adoção misteriosa (e contraditória) e com os dramas políticos daquele país. O terceiro plano de realização do romance é o da memória que continuamente emerge e se transforma em catalisador da busca de compreensão do presente nas teias do tempo passado, e onde, por exemplo, a dor das avós argentinas que ainda hoje buscam os seus netos se cruza com os segredos, a dor, os traumas e o amor da família do narrador/autor. Estamos perante um excelente romance. Colocando-se no registo de atestação de uma experiência pessoal intensa, Julián Fuks conseguiu alcançar em A Resistência o difícil patamar da contenção discursiva no interior daquele arco simultaneamente emocional e intelectual que define as construções literárias mais cativantes.

Nazaré Gomes dos Santos

Desde as primeiras páginas do livro, o que se põe em evidência é mesmo essa espécie de pacto de ambiguidade com o leitor (inicialmente a experiência não deixa de ser um pouco inquietante), gerando incertezas em relação ao estatuto do que é real ou inventado. No entanto, provavelmente em função do tom confessional da narrativa, vão-se instaurando, paulatinamente, novos espaços de cumplicidade com o leitor, fazendo com que ele comece a perceber (e participar ativamente) no jogo linguístico (“com meus pais aprendi que todo o sistema é signo”) e político que, ao fim e ao cabo, constitui este romance. Com este romance, Julián Fuks sabe conciliar com mestria os vários planos da narrativa, utilizando uma linguagem sóbria mas densa (firmeza do vocábulo, a frase certeira/lógica) e um ritmo narrativo extremamente fluente. O nível de maturidade literária deste romance pode ser visível também pelas marcas de “distanciamento” que o narrador/autor imprime à narrativa, evitando assim (em função de muitas passagens pungentes) o clima dramático ou mesmo o tom lamechas, enfim, a resistência ao fácil. Mais simples do ponto de vista formal e conciliando, de forma exemplar, o peso da memória individual com o peso da memória colectiva, o autor não deixa de ampliar as possibilidades de maior legibilidade para a sua obra.